APRESENTAÇÃO
Resumo
Uma nova era para os Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade no Brasil
A Revista Brasileira de Estudos CTS representa um marco histórico para a consolidação dos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade no Brasil. Mantida pela Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR), esta nova publicação surge como fruto de um trabalho coletivo que envolveu pesquisadoras e pesquisadores de diferentes gestões da Associação. A revista se caracteriza por seu caráter interdisciplinar e transdisciplinar, com uma abordagem crítica que busca compreender as múltiplas articulações entre conhecimento científico, desenvolvimento tecnológico e relações ecológicas. Sua proposta editorial é ambiciosa: impulsionar uma produção acadêmica que atua nas fronteiras entre diferentes enfoques e paradigmas científicos, buscando entender e transformar as bases cognitivas e materiais de sustentação da sociedade contemporânea.
Em outubro de 2010, foi fundada a ESOCITE.BR, marco institucional que assumiu a tarefa crucial de agregar e fortalecer a área CTS no país. Esta iniciativa representa um movimento de maturação da coletividade acadêmica brasileira, que reconheceu a necessidade de criar espaços específicos para o desenvolvimento destes estudos. Os Estudos CTS no Brasil enfrentam desafios únicos relacionados aos próprios desafios da sociedade brasileira, principalmente aqueles relacionados à nossa intransigente desigualdade social. Esta realidade demanda uma perspectiva interdisciplinar, acima de tudo crítica, na compreensão dos desafios societais que nos encaram, além de uma perspectiva enraizada que possa contemplar a diversidade de saberes e povos que fazem do Brasil um país único.
Para compor este primeiro número da Revista, foram convidadas doze pesquisadoras e pesquisadores brasileiras/os de destacada atuação na área CTS, que apresentam contribuições relevantes para o campo em temáticas e abordagens diversas. Deve-se destacar também nesse primeiro número a diversidade de gênero, raça, região e geração das autoras e autores. São artigos com potencial de funcionar como um mosaico de nossas melhores investigações no campo, servindo de base para uma verdadeira organização da agenda de pesquisa CTS e para inspirar outros pesquisadores a se debruçar sobre essas temáticas do campo.
O volume é aberto com o artigo de Fernanda Sobral, professora emérita da UnB e pesquisadora emérita do CNPq, intitulado “Novos ventos sopram para a produção de conhecimento: uma guinada social?”. Sobral, que foi do Conselho deliberativo da ESOCITE.BR e vice-presidente da SBPC, analisa as transformações contemporâneas na produção de conhecimento, investigando se estamos testemunhando uma guinada social significativa na forma como a ciência se organiza e se relaciona com a sociedade.
Ivan da Costa Marques, professor da UFRJ, fundador e primeiro presidente da ESOCITE.BR, contribui com “CTS, Universidade e saberes brasileiros”, um artigo que posiciona os Estudos CTS como ferramenta para democratizar conhecimentos e valorizar saberes locais. Marques discute criticamente a “fuga interior de cérebros” identificada por Xavier Polanco, fenômeno pelo qual acadêmicos latino-americanos importam não apenas soluções, mas também problemas e questões de pesquisa dos países desenvolvidos. O autor defende a necessidade de superar essa dependência intelectual e desenvolver pesquisas genuinamente brasileiras, configuradas a partir do solo em que pisa o povo brasileiro.
Em seu texto, Janaina Pamplona da Costa, da UNICAMP e atual presidenta da Asociación Latinoamericana de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología (ALESOCITE), discute em “O campo ciência, tecnologia e sociedade e novos paradigmas de política de ciência, tecnologia e inovação no Brasil: em direção ao seu reconhecimento no financiamento à pesquisa” os modelos internacionais recentes de política CTI, incluindo a pesquisa e inovação responsável, a política de inovação transformativa e a política orientada por missões. Sua análise argumenta pela necessidade urgente de reconhecimento do campo CTS como subárea nas agências de financiamento à pesquisa no Brasil, particularmente no CNPq, como forma de contribuir para a emergência de modelos locais de política CTI coerentes com as demandas societais do país.
Por sua vez, Letícia Cesarino, professora da UFSC, explora as “Crises permanentes e a metapolítica das plataformas: preempção e aceleração”, investigando como as plataformas digitais criam dinâmicas de produção de conhecimento e organização social. Seu trabalho analisa como essas tecnologias operam em regimes de crise permanente, gerando formas específicas de antecipação e aceleração que afetam profundamente as relações sociais contemporâneas.
Segue-se o texto de Antônio Almeida Jr., professor da Esalq da Universidade de São Paulo, que contribui com uma análise crítica em “Inteligência artificial, imperialismo e esperanças contra-hegemônicas”, examinando o desenvolvimento da inteligência artificial no contexto das relações de poder global. Seu artigo investiga como as tecnologias de IA reproduzem estruturas imperialistas e identifica possibilidades contra-hegemônicas que podem emergir de contextos como o brasileiro, oferecendo alternativas aos modelos dominantes de desenvolvimento tecnológico.
Irlan von Linsingen, Professor da UFSC, articula perspectivas CTS e decoloniais em “A perspectiva CTS e decolonial na Educação Científica e tecnológica para emancipação e sustentabilidade”. Seu trabalho propõe uma reformulação da educação científica e tecnológica brasileira que incorpore tanto os insights dos estudos CTS quanto as críticas decoloniais, visando processos educativos que promovam emancipação e sustentabilidade. O autor critica os “delírios sociopolíticos” que afetam a percepção da realidade e propõe abordagens educativas que considerem a diversidade epistemológica brasileira.
Luisa Massarani, pesquisadora FIOCRUZ, e Graziele Scalfi, pesquisadora do Instituto Nacional de Comunicação Pública em Ciência e Tecnologia, investigam, “Emoções em espaços científico-culturais: uma reflexão sobre a experiência de visita”, explorando dimensões frequentemente negligenciadas da divulgação científica. Suas pesquisas examinam como as emoções influenciam a experiência de visitação a museus e centros de ciência, contribuindo para uma compreensão mais complexa dos processos de comunicação pública da ciência e de apropriação social do conhecimento científico.
No texto de Fabíola Rohden, da UFRGS, é analisado como as redes sociais criam narrativas alternativas sobre saúde em “Materializando evidências paralelas: narrativas sobre corpo, saúde e doença nas redes sociais”. Seu trabalho examina como essas plataformas permitem a circulação de discursos que desafiam o conhecimento médico estabelecido, criando formas paralelas de evidência que competem com os saberes biomédicos tradicionais e influenciam comportamentos de saúde da população.
Já Rosana Castro, Professora da UNB, contribui com “Negacionismos e temporalidades: antecipação, evidência e ciência na defesa do ‘tratamento precoce’”, uma análise sofisticada das dimensões temporais do negacionismo científico durante a pandemia de COVID-19. Castro examina como defensores do “tratamento precoce” mobilizaram específicas construções temporais, antecipando futuros e manipulando evidências para sustentar suas posições, revelando as complexas relações entre tempo, evidência e política na ciência contemporânea.
Tiago Ribeiro Duarte, também da UNB, investiga as nuances da hesitação vacinal em “’Eu não sou anti-vacina’: desconfiança vacinal entre bolsonaristas durante a pandemia da Covid-19”. Seu estudo revela as complexidades da desconfiança em relação às vacinas no contexto político brasileiro, mostrando como indivíduos que se identificam como não sendo “anti-vacina” desenvolvem, paradoxalmente, formas específicas de resistência à vacinação, demonstrando a necessidade de abordagens mais sofisticadas para compreender a hesitação vacinal.
Segue-se o texto de Henrique Cuckierman, Professor da UFRJ que, promovendo uma perspectiva histórica com “Da ousadia: um manuscrito em defesa da Cobra Computadores e da reserva de mercado”, resgata a história da Cobra Computadores e da política brasileira de reserva de mercado na informática, defendendo a importância do conceito de “patrimônio tecnológico” brasileiro. Cuckierman demonstra como a tecnologia desenvolvida localmente, mesmo com funcionalidades similares às estrangeiras, possui valor estratégico distinto por sua origem e adequação aos problemas locais.
Finalmente, Rafael Dias, professor da UNICAMP, examina “Visões de desenvolvimento: a relação entre natureza, sociedade e tecnologia na construção de uma Civilização Ecológica pela China”. Seu trabalho analisa o modelo chinês de desenvolvimento tecnológico e suas implicações para as relações entre natureza, sociedade e tecnologia, oferecendo insights importantes para compreender modelos alternativos de desenvolvimento que podem inspirar abordagens brasileiras aos desafios da sustentabilidade.
Os artigos reunidos neste primeiro número demonstram de forma inequívoca a vitalidade e diversidade da pesquisa CTS no Brasil contemporâneo. Eles abordam desde questões históricas fundamentais, como o resgate da experiência da Cobra Computadores, até desafios contemporâneos urgentes, como a hesitação vacinal e o negacionismo científico durante a pandemia de COVID-19. Passam por reflexões epistemológicas profundas sobre a natureza do conhecimento científico e sua relação com saberes locais, chegam a análises sofisticadas de políticas públicas de ciência e tecnologia, e exploram as implicações das tecnologias emergentes como a inteligência artificial.
Assim, a Revista Brasileira de Estudos CTS representa muito mais do que uma nova publicação acadêmica no cenário editorial brasileiro. Ela simboliza a consolidação de uma coletividade científica madura, crítica e profundamente comprometida com os desafios específicos da realidade brasileira.
Fabrício Neves
Presidente da ESOCITE.BR
Universidade de Brasília
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